Tema cobrado na discursiva DPE-SP-2023-FCC:
O reconhecimento do racismo estrutural da sociedade brasileira possibilitou o enfrentamento a formas contemporâneas desse fenômeno.
Nessa seara, disserte sobre o racismo ambiental e o racismo religioso, abordando, necessariamente: (a) como se configuram e no que consistem essas formas de expressão do racismo; e (b) quais povos e comunidades tradicionais são atingidos por essas configurações de discriminação. Justifique sua resposta.
Espelho(sobre o racismo religioso):
Racismo religioso está relacionado a ideia de que religiões não majoritárias e não cristãs, praticadas por determinados grupos, são desvalorizadas e alvo de discriminação e ataques.
(…)
Os grupos atingidos pelo racismo religioso são comunidade de terreiro, comunidade islâmica-muçulmana, grupos de religião de matriz africana (em suas diferentes vertentes) ou outros grupos, devidamente justificados.
Na DPE-RJ-2021:
Jornais de grande circulação têm noticiado seguidos casos envolvendo violação de direitos de pessoas adeptas de religiões de matrizes africanas. Em um dos casos, uma mãe foi denunciada por lesão corporal em contexto de violência doméstica e familiar, por ação e omissão relevante, por ter iniciado no Candomblé sua filha de 12 anos, com quem convivia desde o nascimento.
Na denúncia, o promotor de justiça alega que a genitora levou a suposta vítima a um ritual religioso no qual teria sofrido cortes provocados por gilete ou navalha, causando-lhe lesões corporais de natureza leve. A adolescente foi submetida a exame médico-legal e o perito constatou “lesões ínfimas e insignificantes, na região posterior do ombro direito e região lateral do braço esquerdo, incapazes de gerar prejuízo físico, psicológico ou sequer estético à adolescente”.
a) Identifique o direito fundamental diretamente violado pela denúncia apresentada pelo Ministério Público, explicando-o nos termos em que deve ser mobilizado para a defesa da ré.
b) Tratando o caso como hipótese de racismo, que proteções jurídicas podem ser mobilizadas para maior garantia de direitos da mãe e de sua filha?
(…)
Espelho:
A) O candidato deverá expor que a liberdade religiosa é direito fundamental previsto na CRFB/1988 no seu artigo 5o, VI: “ é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. Seu conteúdo é determinado pela possibilidade de exercício de culto religioso, sem que haja interferência ou embaraço por parte do Estado, seus agentes, ou de particulares.
As possíveis limitações impostas ao exercício da liberdade religiosa são excepcionais e só se justificam quando previstas em lei em sentido formal, e se impõem como condição necessária, menos gravosa e proporcional em sentido estrito para a preservação de direito constitucional concorrente de maior peso na hipótese considerada.
No caso em questão, a perícia confirma que não há direito constitucional concorrente a ser analisado, de modo que não há o que justifique constitucionalmente a limitação à liberdade religiosa.
No voto vogal do RE494.601 RS, o Ministro Edson Fachin (pg. 28) argumenta que: “A proteção deve ser ainda mais forte, como exige o texto constitucional, para o caso da cultura afro-brasileira, não porque seja um primus inter pares, mas porque sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural – como, aliás, já reconheceu esta Corte (ADC 41, Rel. Min. Roberto Barroso, Pleno, DJe 16.08.2017) -, está a merecer especial atenção do Estado”. Manifestação reforçada pelos demais ministros que fizeram compor a ementa do RE 494.601 RS, com a seguinte afirmação: “ A proteção específica dos cultos de religiões de matriz africana é compatível com o princípio da igualdade, uma vez que sua estigmatização, fruto de um preconceito estrutural, está a merecer especial atenção do Estado”.
Além disso, o Estatuto da Criança e do Adolescente garante no seu artigo 22, parágrafo único, que pais e mães podem educar seus filhos e filhas de acordo com sua convicção religiosa, transmitindo suas crenças e culturas. O mesmo direito é referido na Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 12. 4) e no Pacto de Direitos Civis e Políticos (art. 18.4).
B) Trabalhar o caso como hipótese de racismo religioso permite não apenas maior proteção à mãe e à filha, como possibilita buscar responsabilização contra pessoas que geraram a violação de direitos.
A Lei 7716/1989 prevê no seu artigo 1o a punição para crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. E, no artigo 20 torna crime “ Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
A criminalização de uma pessoa por professar a sua fé e agir de acordo com os preceitos de religião de matriz africana configura racismo religioso, e não apenas intolerância religiosa, afinal outras celebrações que envolvem ínfimas lesões de crianças (à exemplo da circumcisão promovida por professantes do judaísmo e islamismo) não são consideradas penalmente a ponto de ensejar a deflagração de uma ação penal.
No mesmo sentido, o artigo 2o da Lei 12.288/2010 (Estatuto da Igualdade Racial) reforçaa atipicidade da conduta (lesão corporal por ação e omissão, prevalecendo das relações domésticas e de coabitação), ao determinar que: “Art. 2o. É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais”. Assim como no artigo 24 define: “ O direito ‘a liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício de cultos religiosos de matriz africana compreende: I – a prática de cultos, a celebração de reuniões relacionadas à religiosidade e a fundação e manutenção, por iniciativa privada, de lugares reservados para tais fins; II – a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões; e VIII- a comunicação ao Ministério Público para abertura de ação penal em face de atitudes e práticas de intolerância religiosa nos meios de comunicação e em quaisquer outros locais.”
O tratamento do caso como hipótese de racismo religioso possibilita que, para além do descabimento da denúncia e da restituição de todos os direitos de mãe e filha, sejam responsabilizados os agentes públicos e privados que concorreram para a violação do direito fundamental à liberdade religiosa.
Tema de repercussão geral decidido pelo STF em 2024 que se relaciona ao assunto(tema 953):
É constitucional a utilização de vestimentas ou acessórios relacionados à crença ou religião nas fotos de documentos oficiais, desde que não impeçam a adequada identificação individual, com rosto visível.